Os cinco membros da equipe se encontravam bastante ocupados com faculdade ou coisas da vida pessoal, mas agora que alguns estão entrando de férias, a frequência de posts voltará ao normal. Estamos de volta! Dessa vez, trago um texto sobre as traduções de HP, ou melhor, sobre a tradutora de HP e sua genialidade. Na coluna, falo de Lia como a típica "Lia-lover" que sou, porém tentando manter um olhar crítico (ainda que falhado, pois meu propósito não foi analisar a tradução, e sim abordar justamente as qualidades de Wyler como tradutora) para também dizer o que gostaria que fosse melhorado. Espero comentários de todos!
Uma das mais antigas polêmicas que giram em torno da série Harry Potter, pelo menos entre os fãs brasileiros, é a tradução feita por Lia Wyler: Enquanto muitos odeiam, poucos amam (e devo dizer que estou incluída neste grupo) e outra parcela se encontra indiferente.
Em vez de listar cada falha e acerto, porém, decidi "inovar" um pouquinho e fugir ao padrão dos textos que criticam as versões brasileiras dos livros, e falar porque aprecio tanto estas, falando do bom e do ruim como conseqüencia. Pois bem. Como alguns notaram, pela coluna anterior, gosto de utilizar definições exatas de dicionários, e, dessa vez, não será diferente: O texto será introduzido com o significado de tradução, para evitar possíveis equívocos decorrentes da ignorância provinda de alguns:
"Tradução é uma atividade que abrange a interpretação do significado de um texto em uma língua — o texto fonte — e a produção de um novo texto em outra língua mas que exprima o texto original da forma mais exata possível na língua destino; O texto resultante também se chama tradução."
Conforme destacado em negrito acima, "mas que exprima o texto original da forma mais exata possível", portanto isso nos leva a concluir que, inevitavelmente, ocorre uma adaptação, afinal o texto deve estar o mais parecido possível com o original e há centenas de jogos de palavras e piadas que, traduzidos da maneira literal, perdem o sentido. No caso de palavras inventadas, como "Muggle", os nomes das quatro casas de Hogwarts, "Quidditch" e - muitos - outros, digo o mesmo. Convenhamos que é muito mais interessante ler os "abrasileiramentos" de Lia do que as palavras que, apesar de soarem interessantes em países de língua inglesa, seriam incompreensíveis para os leitores daqui!
Se procurarmos um pouco sobre a tradução de HP de cada país, veremos que apenas a nossa possui adaptações como "Quadribol", "Grifinória", "Lufa-Lufa", "Sonserina" e "Corvinal", e mesmo que alguns fãs as odeiem do fundo da alma, optando até mesmo por utilizar os termos originais, eu as defendo e faço questão de usá-las, simplesmente pela genialidade e cuidado empregados por Wyler na hora de escolher cada um, e singularidade e riqueza acrescentadas à obra traduzida. "Bichento" (de "Crookshanks") é um excelente, e talvez o maior, exemplo disso, uma vez vemos traços da cultura brasileira na palavra - que é usada em determinada região do país para designar pessoas com pernas tortas -.
Na minha opinião, entre os pontos fortes de Lia estão Bichento (motivo já citado) e as casas Sonserina - talvez uma mistura de sonso e ferino - e Lufa-lufa, cuja definição no dicionário consta "agitação", característica vista em muitos membros da casa. Os nomes dos Marotos (e também o próprio nome do grupo, naturalmente), em especial Rabicho, também merecem destaque. Também é válido mencionar que o original, "Wormtail", é uma junção das palavras "worm" (verme) e "tail" (cauda). Para traduzir uma palavra com essa, é necessário saber o significado de ambas, para, enfim, juntá-las inteligentemente e criar apenas uma. Também é o caso de Grampo (grip e hook, que formam Griphook) e as "buck" e "beak" do Bicuço inglês, Buckbeak. Negativamente, eu ressalto a substituição dos "us" por "o", como em Albus/Alvo, Severus/Severo e Remus/Remo, além da permanência de Sirius. Segundo a lógica, seria coerente termos um Sírio, e, mesmo que prefira os nomes originais, sou a favor de um padrão.
Uma das críticas mais fortes por parte dos fãs vem do Apagueiro/Desiluminador, e eu diria que essa é a única que de fato me irrita, pelo simples motivo de que, nos livros em inglês, realmente temos dois termos distintos. E a explicação é bem óbvia, na verdade: No primeiro livro da série, não sabemos o nome do objeto por estarmos apenas observando a cena (pois Harry ainda é um bebê e nem se encontra presente na mesma), e ele é denominado "put-outer" (nosso "apagueiro"). Já no sétimo e final, quando Rony o recebe, lemos no testamento de Dumbledore "Deluminator". É possível notar, também, que no primeiro livro lemos "put-outer" com letras minúsculas e entre aspas, o que já indica que não é um nome "oficial".
E quanto aos títulos dos livros? Muitos têm problemas com os do segundo e do sexto (enquanto eu prefiro apreciar o do sétimo), que traduzidos literalmente seriam "A Câmara dos Segredos" e "O Príncipe Mestiço". Não sei se sou a única a recordar, mas, em Câmara Secreta, em certas passagens, a câmara é referida como Câmara dos Segredos, enquanto, em Enigma do Príncipe, o príncipe é conhecido como Príncipe Mestiço. E quem disse que não fazem sentido, os títulos?! A câmara podia guardar segredos, mas não deixa de ser secreta! E, afinal de contas, o tal príncipe não é um enigma? Ninguém sabia sua verdadeira identidade. Então, contrariando a grande massa, afirmo com toda a certeza que, em português, prefiro os títulos "Wylerianos".
Talvez eu tenha acabado de ressuscitar uma polêmica antiga, não sei. Deixei passar muita coisa, como o James/Tiago e nosso "Jerry" Potter do sexto livro, e até mesmo variações de nomes de livro para livro, como Cátia/Katie e Quim/Kingsley, trocadilhos e jogos de palavras e erros em geral (os quais, em sua maioria, atribuo mais à edição dos livros do que a própria tradutora) mas suponho que minha intenção tenha ficado bem clara: Um texto falando sobre a genialidade de Lia Wyler com poucos exemplos, buscando convencer alguns de que suas traduções são coerentes e interessantes. E, para os que argumentam com o velho "isso é tão 'nada a ver'", eu só digo uma palavra: Pesquise.
ATUALIZADO: Enviamos mais e-mails a Lia Wyler, e ela nos esclareceu algumas dúvidas, que estão logo abaixo!
> Sirius ou Sírio? "A rigor todos os nomes latinos sofreriam a alteração us> o, comum na língua portuguesa. Muitos leitores raclamaram e a editora resolveu atendê-los pela metade. Sírius, no entanto, é o nome de uma estrela brilhante conhecida por esse nome em português. Fiquei na dúvida, porque já alterara os anteriores, mas decidi por mantê-lo. "
> Tom Riddle e Jerry Potter? "Jerry foi erro grosseiro de digitação e não devia ter sucitado nenhuma polêmica."
> Uma possível explicação para críticas negativas? "Um outro fator que contribuiu para certa confusão foi os leitores paulistas que sabem muito ou algum inglês terem lido a obra em inglês americano, desconhecendo que essa edição sofreu várias alterações para tornar a obra mais inteligível nos Estados Unidos. A propósito os britânicos se vingaram dizendo que o título A pedra Filosofal na América foi trocado para The Sorcerer´'s Stone, porque nos Estados Unidos não há filósofos)."
ATUALIZADO 2: O membro da equipe Daniel, que cursa Letras, foi considerado mais apto a pensar e enviar mais algumas dúvidas a Lia. Seguem as perguntas e respostas:
Daniel: Em Cálice de Fogo, no episódio da terceira tarefa do Torneio Tribruxo, a tradução brasileira traz uma resolução diferente ao enigma da esfinge que protege a Taça-prêmio: ararambóia. Foi a melhor opção pra nossa língua? O tradutor pode então mudar um enigma? Por que não 'aranha'?
Lia: Às vezes em tradução não se leva em conta apenas o trecho a ser traduzido,
mas o que veio antes e o que vem depois. Uma vez que fui obrigada a mudar o enigma – consulte a p. 500 da edição da Rocco – fui obrigada a mudar igualmente a solução.
Não sei como os meus colegas lidaram com o enigma em inglês que fazia alusão
a um espião. Não posso traduzir a palavra “spy” que inicia o enigma para ter
como resultado “spider”, logo, mudo o enigma. Ararambóia é algo que ninguém
beijaria – veja o significado no dicionário. O importante não é o continente, mas o conteúdo, no caso o fato descrito -- Harry Potter foi capaz de decifrar o enigma proposto pela Esfinge.
Daniel: Como J.K Rowling auxiliava nas traduções? Ela certamente tem grande conhecimento na área, pela sua formação, e mesmo no português por ter lecionado em Portugal; mas ela dava dicas como alguma bibliografia para as etimologias na onomástica e topografia, por exemplo? O trabalho de pesquisa em relação às referências clássicas é difícil?
Lia: Ela não me auxiliava nas traduções, mas no início, quando lhe pedi permissão para traduzir os significados recebi uma longa lista de nomes perguntando qual a equivalência que lhes daria. A autora aprovou o meu currículo e as minhas respostas. A partir do terceiro ou quarto volume apareceu na Internet um site que respondia às dúvidas de tradutores e leitores dando a etimologia dos termos usados por J.K. Rowling, mas por questão de direitos autorais foi retirado do ar. A queixa da falta de auxílio aos tradutores é mundial e tivemos ocasião de discutir isso na reunião que a UNESCO organizou em Paris para os que contribuíram para o sucesso da saga. A pesquisa clássica não foi difícil, cheguei mesmo a traduzir um texto de Ésquilo. Há amplo material sobre os clássicos em todos os idiomas.
Daniel: A variação linguística dos falares mais “populares” ou “caipiras” como o de Hagrid foi transmitida?
Lia: O falar de Hagrid não foi traduzido por decisão da tradutora e da editora. A
razão? Que falar o Hagrid deveria usar? O do favelado carioca, o do caipira paulista ou mineiro, o do nordestino, o do marginal? Isso seria um desvirtuamento do personagem que em vez de ser um “rústico” inglês entraria em crise existencial falaria um patuá alheio ao seu ambiente.
Daniel: O trabalho de revisão na editora deveria ser mais cuidadoso, no caso de erros de digitação? Até onde a ortografia gramaticalmente à risca é culpa do tradutor?
Lia: Não sei se entendi sua pergunta, mas vou responder o que entendi. Realmente deveria ser mais cuidadoso e isso seria possível se as editoras recebessem o material com antecedência e não fossem pressionadas a lançar os livros da série na mesma data – ou quase -- no mundo inteiro. A ortografia e a correção gramatical são responsabilidade dos revisores que trabalham na editora.
Daniel: Uma questão frequentemente levantada é a consulta de variadas traduções (em outros idiomas) para achar a melhor saída em algum dilema. Na literatura contemporânea isso também ocorre? Com HP você manteve contato com mais tradutores?
Lia: Os tradutores da série Harry Potter mantiveram contado através de uma lista de discussão reservada, mas não interferiam nas escolhas feitas pelos indivíduos, uma vez que as premissas que adotaram diferiam de país para país.
ATUALIZADO 3: A Paty selecionou mais dúvidas, algumas das quais surgidas nos comentários deste post, e hoje Lia respondeu ao e-mail. As perguntas e respostas se encontram abaixo, no mesmo esquema que a atualização anterior:
Patrícia: Foi colocado por alguns comentaristas que os nomes "Uón Uón" e "Moliuóli" não exprimem o exato significado das expressões em inglês, sendo
uma tradução mais sonoro. A meu ver são palavras que transmitem um valor ao
contexto em que estão inseridas, causando vergonha em Rony e Molly Weasley,
no caso. Imagino que estas traduções sejam muito difíceis de realizar, pois
estão ligadas aos trocadilhos que J.K. Rowling espalha por toda a série,
como você optou por essas escolhas?
Lia: Quando um tradutor esgota todas as possibilidades de traduzir os jogos de
palavras ele precisa manter a intenção óbvia do autor. No caso que você cita, ressalto o ridículo dos apelidos carinhosos que só não são ridículos para os envolvidos. A família e os amigos se absteem de repeti-los. Daí o recurso à tradução sonora como fiz em outros trechos. No caso do rock-roque por exemplo.
Não são opções fáceis e o tempo é muito curto. Às vezes me ocorrem no dia seguinte quando acordo. Claro que recorro ao acervo de informações em inglês e português que acumulei fora da escola durante a vida.
Patrícia: Em discussões sobre traduções, alguns dos argumentos mais usados questionando o trabalho feito de Harry Potter são a tradução de Plataforma nove e meio e o título do sexto livro da série. Acredito serem mudanças aplicadas por uma questão cultural e que em nada afeta a trama da saga, você poderia nos explicar um pouco sobre estas escolhas?
Lia: O caso da Plataforma 9 ½ se enquadra no argumento que usei acima. A intenção óbvia aí era numerar uma plataforma intermediária que só existe para um
bruxo, e só pode ser inteiramente entendida se pensarmos em uma criança de
9-12 anos para quem foi escrito o livro. De 9 a 12 anos uma criança ainda não cristalizou o conhecimento de frações, e tampouco usa “quarto” na
acepção que é entendida e usada pela criança inglesa. Foi portanto uma
tradução cultural. Veja quantos significados você própria – não sei que
idade tem – conhece para a palavra “quarto”. Expliquei isso há 10 anos
quando o primeiro volume foi lançado, mas os leitores continuam a discordar
da minha opção. Cada cabeça uma sentença, certo?
Quanto ao título do sexto livro ele foi escolhido pela própria Rowling entre três opções que os tradutores apresentaram. Aparentemente ela concordou
comigo que a identidade do tal príncipe permeava toda a trama, portanto, era
o grande enigma a ser decifrado.
A palavra “bastardo”, que no Brasil só era usada historicamente, não se aplica na sociedade contemporânea. Etnicamente mestiços somos todos nós
brasileiros. Quanto à palavra mestiço aplicada aos os impuros de sangue,
acho que nem vale a pena discutir.
Patrícia: A escolha de Servolo substituindo Marvolo serviu perfeitamente para manter o jogo de palavras, mas existiu algum outro motivo para esta
escolha? E em relação a tradução de "Kreacher" para Monstro, como aconteceu?
Lia: Os tradutores do mundo inteiro – 68 – tiveram que mudar o nome do meio do bruxo. Escolhi Márvolo [Servolo]. Quanto a Kreacher que foneticamente pode ser
entendido como “creature”. Eu podia escolher fera, bicho, monstro que é o
caso dele em minha opinião (tradutor também tem preferências). É claro que
você pode pensar como o Dumbledore e justificar a revolta do Monstro, mas eu
não sou personagem...
Patrícia: E por fim, o assunto mais recorrente na discussão foi a desvalorização da nossa língua, que faz com que muitos fãs brasileiros não
enxerguem com bons olhos a tradução nacional, pois valorizam muito o idioma
inglês. Como você vê esta questão?
Lia: Veja a desvalorização com muita tristeza. Um mundo globalizado para mim significa que os produtos culturas de cada país são apreciados e divulgados
pelas potências hegemônicas tal como são. Não significa pasteurização. Eu entendo que o indivíduo colonizado ache a cultura hegemônica mais atraente e queira a ela pertencer, mas acho isso uma relação muito parecida com a do torturador e do torturado. Você faz o jogo do dominador, abre mão do que pensa, mas jamais será considerado um igual.